Em maio de 2020, o presidente da XP Investimentos disse que o Brasil estava indo bem no enfrentamento da pandemia. Segundo o fundador de uma das maiores corretoras de investimentos independente do Brasil, o pico da doença já havia passado entre as classes média e média alta. Era o início da pandemia, e o país contabilizava 7 mil mortos.
Um mês antes, o sócio-fundador da consultoria de investimentos Nord Research comemorou o aumento do “PIB privado” e arrematou: “Melhor notícia que vejo em muito tempo (…) Se continuarmos assim esse país vai longe!”
Na mesma época, o estrategista-chefe da Empiricus, outra corretora importante, escreveu para os assinantes da empresa: “Sim, o coronavírus vai afetar o Brasil no curto prazo. Mas, quer saber, isso não importa para o investidor. Com os preços caindo, na verdade eis agora uma ótima oportunidade de compra incremental de ações”.
Trata-se daquele velho clichê de coach faria limer: há que se transformar crise em oportunidade.
Àquela altura já estava claro que o governo federal tomava as piores decisões no enfrentamento da pandemia, mas o mercado financeiro não se abalava. Quase um ano depois estamos aqui, contabilizando mais de 250 mil mortos e vendo os hospitais — inclusive os da classe alta — entrarem em colapso.
Passado quase um ano, o mesmo homem da Empiricus decretou que o país caminharia para uma explosão fiscal se continuasse a pagar o auxílio emergencial de forma subsequente.
Nesta primeira semana de março, a XP Investimentos divulgou um relatório sobre a PEC Emergencial, às vésperas da sua aprovação no Senado. A PEC flexibiliza regras fiscais para viabilizar a volta do auxílio emergencial, que não precisará mais ficar limitado pelo teto de gastos. Segundo o relatório da corretora, feito com base num levantamento com investidores, o melhor cenário da PEC seria um “limite para o auxílio emergencial, sem exclusão do Bolsa Família do teto de gastos e aprovação de contrapartidas”. Já o pior cenário seria “sem limite para o auxílio, com Bolsa Família excluído do teto de gastos e sem contrapartidas”.
Bolsonaro conta com o apoio da frieza do mercado, que transforma mortos em um número de uma planilha de Excel.
Traduzindo: o melhor cenário o mercado financeiro é intensificar a miséria para manter o limite de teto de gastos e poupar a economia. Um auxílio emergencial mais generoso não é visto com bons olhos pelos ricaços. Mesmo com o Ministério da Saúde prevendo 3 mil mortes diárias a partir de março, os grandes jogadores do mercado financeiro seguem preocupados com a saúde das contas públicas. O presidente da República não está só no boicote à saúde pública. Ele conta com o apoio da frieza do mercado, que transforma brasileiros mortos em um mero número de uma planilha de Excel.
Enquanto empresas quebram com a pandemia, esses investidores estão lucrando com ela. O BTG Pactual, fundado por Paulo Guedes, teve um lucro líquido de mais de 4 bilhões de reais em 2020. A expectativa para 2021 é que essa cifra aumente para 5 bilhões de reais. A XP Investimentos teve lucro líquido em 2020 111% maior que o ano anterior, chegando a 2,27 bilhões de reais.
Enquanto nadam em dinheiro como Tio Patinhas, defendem que o “melhor cenário” é o pagamento de um auxílio emergencial o mais modesto possível para socorrer os mais pobres. Um bom auxílio emergencial salvaria muitas vidas e ajudaria as pessoas a ficarem mais em casa, mas isso não sensibiliza os jogadores do cassino.
Para Zeina Latif, que foi economista-chefe da XP e já ocupou cargos importantes no mercado financeiro, o problema da vacinação no Brasil não é fruto do boicote bolsonarista, mas da “nossa burocracia estatal”. Para ela, “não se trata de (falta) de dinheiro, não se trata de vontade política, mas da máquina que não funcionou”.
Para a economista, trata-se de uma questão de gestão, e não de vontade política. Estamos falando do país que até a chegada da tragédia bolsonarista era referência mundial em vacinação. A “burocracia estatal” nunca foi um empecilho nessa seara. Nem mesmo o fato do país estar empilhando cadáveres faz com que o mercado largue a agenda do estado mínimo e responsabilize diretamente Bolsonaro. Afinal de contas, o mercado financeiro o elegeu por se sentir muito bem representado por Paulo Guedes.
Em uma live da XP Investimentos em abril do ano passado, Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, falou o que os investidores gostam de ouvir: defendeu o congelamento do salário de servidores públicos durante a pandemia. “O desemprego está subindo a passos largos. Será que está correto algumas pessoas manterem seus empregos e não perderem salário?”.
Paulo Guedes e sua turma — aquela que não quer taxar grandes fortunas — seguem até hoje tentando congelar os salários dos trabalhadores do serviço público, enquanto muitos deles estão na linha de frente do combate à pandemia. Os ricaços fazem de tudo para empurrar os custos da crise para o lombo do trabalhador.
Lembremos que, para atender os anseios do mercado, o governo Michel Temer liderou a aprovação da PEC do Teto de Gastos que hoje sufoca o investimento público. Em 2015, antes da PEC, o país figurava como a sétima maior economia do mundo. Hoje está quebrado e caminhando para ser a 12º economia do mundo. O receituário neoliberal foi seguido à risca, e o resultado foi esse: economia arruinada, os pobres ficaram mais pobres, e os ricos, mais ricos. Bolsonaro chegou para dar sequência a esse projeto.
Enquanto caminhamos para uma convulsão social, a turma do cassino financeiro segue pregando arrocho para quem mais precisa em nome da responsabilidade fiscal. Não faz pressão pelo lockdown, que salvaria muitas vidas, mas pelo congelamento dos salários dos servidores e por um auxílio emergencial o mais modesto possível. Os representantes do mercado estão sempre na mídia pregando parcimônia com as contas públicas, mas nunca os vemos pressionando o governo pela urgência da vacinação em massa, que salvaria muitas vidas e ajudaria na retomada da economia.
Falta muito pouco para as pessoas começarem a saquear supermercados e morrerem dentro de casa ou na porta dos hospitais por falta de leitos de UTI. Mas as grandes empresas do mercado financeiro seguirão lucrando com a pandemia e comemorando o aumento do “PIB privado”. Como bem disse o CEO da XP: “Eu posso afirmar, sem sombra de dúvidas, que a empresa está melhor que estava antes da pandemia”.
Não será apenas Bolsonaro que estará com as mãos sujas de sangue ao fim dessa pandemia. O mercado financeiro também. Com as mãos sujas de sangue e os bolsos cheios de dinheiro.
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