Braço forte, e-mail amigo

Os militares se aprontam para a eleição do ano que vem.

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Um alto oficial do Exército mandou que fosse distribuído esta semana um questionário elaborado por três instituições privadas e que servirá para “criar condições objetivas para o Brasil proporcionar um futuro de justiça e felicidade ao povo brasileiro”. O e-mail, enviado por um coronel a pedido do general Valério Stumpf Trindade, comandante militar do Sul, encaminha uma pesquisa de algo chamado de “Projeto Nação”.

Sim, é exatamente o que você pensou: uma espécie de plano de governo para o país, elaborado com a colaboração de militares da ativa por institutos privados que pertencem, também, a militares. Ele nasceu das mentes de um militar de extrema direita chamado Luiz Eduardo Rocha Paiva e de uma figura da várzea política chamada Thomas Korontai.

Korontai vive em Curitiba, tentou ser candidato a presidente da República em 2018 (mesmo sem ter um partido legalmente registrado) prometendo extinguir o MEC, encabeça um tal Instituto Federalista e espalha fake news sobre o voto eletrônico no Brasil e a fraude inventada eleitoral por Donald Trump nos EUA aos poucos seguidores que possui nas redes sociais.

Mas o nonsense se revestiu de alguma seriedade quando foi abraçado pelo Instituto Villas Bôas, criado pelo general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante geral do Exército, autor do tweet que ameaçou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus de Lula, em 2016. Jair Bolsonaro já disse que foi Villas Bôas quem o elegeu presidente em 2018.

O site do Instituto Federalista dá uma pista de como Villas Bôas entrou na jogada: “Através do Instituto Sagres, tivemos conhecimento [de] que o general Villas Boas, ex-comandante do Exército, sentia a necessidade e trabalhava no sentido de criar um instituto [e] que entre suas finalidades estava a elaboração do referido projeto. Assim, as três entidades uniram-se com o objetivo de elaborar um projeto de nação para o Brasil”.

Os militares e seus negócios

O Instituto Sagres é uma empresa fundada por militares da reserva para ganhar dinheiro em Brasília. Uma entre várias, como, por exemplo, o Instituto Força Brasil, investigado no inquérito das fake news e, desde a quinta passada, suspeito de participar de negociatas na compra de vacinas pelo governo Bolsonaro.

O Sagres diz fazer “pesquisas em política e gestão estratégica” e formalmente é uma organização da sociedade civil de interesse público, o que lhe garante inúmeras benesses tributárias. Na prática, faz lobby – produziu publicações patrocinadas pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais – e vende enigmáticos serviços de consultoria a órgãos públicos, majoritariamente. Também já andou enroscado na operação Satiagraha, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas.

Tem também ligações partidárias com a extrema direita: um ex-presidente (e atualmente membro do conselho consultivo) coordenou a bancada legislativa do PSL no Rio Grande do Sul e aventou uma candidatura a prefeito no interior do estado. Mas quem interessa para nossa história é o “diretor de geopolítica e conflitos”: o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva.

Fã do torturador Brilhante Ustra, Rocha Paiva é dado a chiliques golpistas. No mais recente, de 8 de março passado, afirmou – em texto reproduzido pelo Clube Militar – que “aproxima-se o ponto de ruptura” após a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin que retirou da Justiça Federal de Curitiba os processos contra Lula, “uma criatura deplorável”.

É justamente Rocha Paiva o responsável pela “Concepção do Projeto Nação”, expressa num PowerPoint de causar inveja a Deltan Dallagnol e disponível no site do Sagres. O documento de 11 páginas é um amontado de platitudes que não se aprofunda em coisa nenhuma, mas deixa entrever temas caros à extrema direita. Na projeção otimista, produzirá uma conclusão em fins de 2021, a tempo, portanto, de alimentar uma candidatura presidencial – ou ser vendida a algum incauto (como o governo).

É para municiar tal conclusão que servirá a pesquisa distribuída por ordem do general Stumpf. E tão ou mais importante que ela é o uso de um canal oficial e do prestígio do Exército para dar propulsão a um negócio que deveria ser privado e correr fora do ambiente da caserna.

Eu telefonei ao coronel Brisolla, o autor do e-mail, para lhe perguntar a respeito. Ele se mostrou contrariado ao saber que o e-mail havia vazado. “Só mandamos para aqueles que são da nossa rede de colaboradores”. Mas acabou falando – talvez até demais.

“[A pesquisa] É para formação de um cenário prospectivo, que vai dar condições para ajudar o público privado e a área pública. Trabalhamos no Exército com planejamento estratégico. Esse instituto [Sagres] quem compôs são militares. E [também o instituto] do general Villas Bôas. A gente tem ligação com esses institutos que trabalham com gestão política e administração”.

Brisolla foi adiante: “Planejamento é para a nação, não para partido político. Somos totalmente contra a política, políticos. Não temos viés ideológico”, garantiu-me, deixando claro qual o viés ideológico e o futuro – nada democrático – que imagina para a nação.

Valério Stumpf Trindade é um general de quatro estrelas que nasceu e fez boa parte da carreira no Sul do país – ou no Terceiro Reich, jargão interno usado para se referir a militares do Terceiro Exército, atual Comando Militar do Sul. É tido como sujeito extremamente conservador. E, como veremos, leal a suas raízes.

O Rio Grande do Sul é um estado onde o Exército sempre teve presença marcante, em tamanho e influência, por causa da fronteira porosa com Uruguai e Argentina. Não à toa, é terra natal dos ditadores Emílio Garrastazu Médici, Artur da Costa e Silva e Ernesto Geisel. Também são gaúchos Eduardo Villas Bôas e outro personagem importante nesse quebra-cabeças, Sérgio Etchegoyen.

O buraco em que atiraram o país aparentemente não fez os militares recuarem de seu projeto político.

Etchegoyen é amigo de infância de Villas Bôas (ambos nasceram em Cruz Alta), de quem se tornou uma espécie de guarda-costas após vê-lo acometido pela triste doença degenerativa que hoje o faz dependente de um respirador artificial. Foi também responsável por revisar e sugerir alterações no livro-entrevista em que Villas Bôas narrou suas memórias.

Além disso, Etchegoyen era chefe do estado-maior do Exército (espécie de número dois da força) quando foi um dos fiadores da derrubada de Dilma Rousseff – por quem passou a nutrir profundo rancor após a inclusão do nome do pai dele no relatório da Comissão Nacional da Verdade – e do governo tampão de Michel Temer. Deixou o posto para assumir o Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, recriado por Temer. E em dado momento chamou, para ser seu secretário-executivo, o general Stumpf.

Etchegoyen e Villas Bôas são dois dos pontas de lança do movimento que abraçou o capitão reformado Jair Bolsonaro, dono de uma lamentável ficha funcional na força, para recolocar o Exército na política brasileira. Outro é Augusto Heleno, atual titular do GSI, onde Villas Bôas tem cargo de assessor especial. Tudo em casa.

O governo dos militares deu no que estamos vendo: 540 mil mortes por covid-19, boa parte delas evitável, graças à combinação de burrice, teorias da conspiração, negação da ciência, defesa de tratamentos sem eficácia nenhuma e suspeitas em série de corrupção na compra de vacinas, com uma penca de coronéis – e talvez um general – envolvidos. Mas o e-mail descabido e desavergonhado do general Stumpf indica que o buraco em que atiraram o país aparentemente não fez os militares recuarem de seu projeto político ou os tornou mais zelosos da separação desejável entre negócios públicos e privados. Muito pelo contrário.

Enviei perguntas ao comando-geral do Exército sobre o uso da ascendência e do prestígio da corporação para um projeto político dos institutos privados. Não houve resposta.

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