O novo sistema de rotulagem de produtos comestíveis poderia ter sido a principal política pública para conter as maiores causas de morte no Brasil. Mas o processo de definição do modelo a ser adotado se transformou numa aula do atropelo da saúde coletiva em nome do lucro, como mostra um documento exclusivo obtido por O Joio e O Trigo e o Intercept. Ele revela os passos dados por corporações como Nestlé, Danone, Coca-Cola e PepsiCo para enfraquecer uma norma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, que desestimularia o consumo de alimentos ultraprocessados.
O documento, datado de outubro de 2020, é uma apresentação feita pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, a Abia. Ele sistematiza as estratégias de lobby da associação sobre a Anvisa — utilizadas para neutralizar modelos de rotulagem mais eficazes — e indica caminhos para garantir que uma decisão tomada pela agência naquele mês seja mantida.
Ignorando evidências científicas de que sinais de alerta sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras seriam mais eficazes, a Anvisa havia definido que o Brasil terá lupas na parte frontal das embalagens: serão retângulos pretos, com uma lupinha avisando se um produto tem excesso de gorduras saturadas, açúcares adicionados e sódio. Espera-se que a medida entre em vigor em outubro de 2022.
Há algumas diferenças relevantes entre os dois modelos. A ideia dos alertas é exibir um símbolo para cada nutriente em excesso, enquanto a lupa condensa tudo dentro de um retângulo. Assim, no caso das advertências, crianças e pessoas analfabetas conseguem entender que um produto é “alto em”, mesmo sem saber ler.
Como as decisões de compra são tomadas muito rapidamente, as evidências científicas também apontam um melhor funcionamento da lógica de um símbolo por nutriente. Além disso, os alertas já foram testados na prática em países sul-americanos, enquanto as lupas estão no início da implementação no Canadá.
A escolha da forma mais eficaz de comunicar os perigos dos ultraprocessados é uma questão de saúde pública. Doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, câncer e enfermidades cardiovasculares são a causa de três em cada quatro mortes no Brasil. No mundo, representam sete das dez maiores causas de óbito, um processo que avançou de maneira acelerada desde os anos 1990. Álcool, alimentação, cigarro e falta de atividade física são os quatro fatores centrais nessa equação.
Governos do mundo todo começaram a se perguntar qual deveria ser o rol de políticas públicas para lidar com essa questão. Rótulos mais claros, restrições à publicidade, impostos especiais e mudanças no ambiente alimentar são os itens à disposição para lidar com o problema, como o Brasil fez, com êxito, no caso do cigarro.
Inspirada nesse modelo, a Anvisa chegou a discutir uma agenda semelhante para a alimentação, abordando em especial a regulação da publicidade, definida numa resolução de 2010. O Brasil teria sido pioneiro nessa seara – boa parte dos países começou a agir cinco, seis, sete anos depois.
Mas a Abia foi à justiça alegando que a agência extrapolou sua atribuição legal ao regulamentar esse assunto. Naquele momento, as corporações argumentaram que o órgão federal pode fazer valer a legislação, mas não pode criar regras: a decisão judicial não apenas derrubou a resolução, como demarcou uma linha que a Anvisa jamais poderia ultrapassar.
Em 2011, o Mercosul começou a discutir a adoção de um sistema de rotulagem que pudesse, de fato, estimular uma alimentação saudável. Em 2014, a Anvisa criou o Grupo de Trabalho para Auxiliar na Elaboração de Propostas Regulatórias Relacionadas à Rotulagem Nutricional para discutir a questão. Nesse momento, ainda não existia aquele que se tornou o principal ponto de preocupação para as corporações: o sistema de alertas, criado no Chile em 2016.
Inspirado em placas de trânsito, ele vem demonstrando o melhor funcionamento no sentido de incentivar a população a evitar ultraprocessados – algo que o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, recomenda expressamente.
O documento obtido pelo Joio é explícito: na página 13, uma imagem dos rótulos chilenos vem acompanhada da legenda “pior cenário, evitar”. A apresentação destaca que o modelo chileno proíbe os claims nutricionais – mensagens estampadas nos rótulos, como “Rico em vitaminas”, “Com redução do teor de sal” e “Fonte de fibras”.
A indústria passou, então, a mudar ao sabor dos ventos, adaptando todo o tempo seu discurso e suas propostas de acordo com a realidade do momento. Para participar do jogo, tentaram vender à Anvisa a ideia de que um semáforo com as cores verde, amarelo e vermelho seria o melhor sistema possível. Esse método exibe cores para cada nutriente-chave (por exemplo, sal, gordura, açúcar) de acordo com o teor: se baixo, verde; se alto, vermelho.
Numa situação real de compra, com meia dúzia de produtos à disposição e uma decisão que é tomada em segundos, isso obriga o consumidor a um cruzamento complexo de informações. Um dos próprios criadores desse modelo, o professor de saúde da população Mike Rayner, da Universidade de Oxford, admite que ele não funciona a contento, tanto que assinou uma carta aberta em prol dos alertas nos moldes chilenos.
O sistema hermano foi apresentado no nosso país em 2017, pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec. A iniciativa contou com o apoio da Organização Panamericana de Saúde, a Opas, e da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, uma coalizão nacional formada por organizações não governamentais e pesquisadores. Nesse intervalo, Peru e Uruguai também aderiram às advertências chilenas, que mais tarde foram incorporadas pelo México.
A Anvisa na encruzilhada
Em maio de 2018, a Gerência-Geral de Alimentos da Anvisa divulgou um primeiro relatório no qual deixava clara a preferência pelos alertas chilenos. A análise da agência era que as evidências científicas produzidas, até então, mostravam que esse sistema cumpria um papel relevante no estímulo a escolhas mais saudáveis.
Em julho do mesmo ano, a indústria foi à justiça e conseguiu uma liminar para estender uma primeira fase de consulta pública. O mais relevante nesse ponto é ver como a postura da Anvisa era radicalmente oposta: naquele momento, o órgão declarou “perplexidade” diante da atitude da Abia, a quem acusou de promover “afirmações inverídicas” para obter o adiamento.
O sinal amarelo acendeu na indústria, como mostra a página 33 do documento. Foi então que a caixa de ferramentas se abriu. No final de julho, a Abia foi até Michel Temer, que pressionou publicamente a Anvisa – a agência, em tese, tem autonomia em relação ao Poder Executivo.
No começo de setembro daquele ano, a associação empresarial cumpriu a tarefa clássica de usar o poderio econômico como instrumento de pressão. Um estudo de uma consultoria, a GO Associados, estimava um impacto negativo de R$ 100 bilhões e a perda direta de dois milhões de postos de trabalho com a adoção do sistema chileno. A análise pressupunha que todas as pessoas que declararam desgostar dos alertas numa pesquisa do Ibope simplesmente parariam de comer os produtos que os exibissem – é sério.
No mesmo mês, Michel Temer nomeou o aliado William Dib, ex-deputado federal pelo PSDB pelo estado de São Paulo e diretor da Anvisa entre 2016 e 2019, período em foi presidente da agência. Logo de cara, Dib manifestou que não aceitaria a adoção dos alertas, ameaçando atropelar a área técnica. Antes de assumir o cargo, ele havia, em segredo, prometido a representantes da Abia que tentaria evitar a aprovação do sistema de advertências.
Decisões a portas fechadas
Veio, então, a terceira etapa da discussão na Anvisa, e o inverno da indústria se transformou em verão. Em maio de 2019, foi a vez do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, se declarar contrário aos alertas chilenos.
Em setembro do mesmo ano, a Gerência-Geral de Alimentos, a GGALI, da Anvisa, mudou de posição. O relatório final, chamado Análise de Impacto Regulatório, firmava posição contrária aos alertas e se inclinava, claramente, por um modelo de lupas similar ao adotado no Canadá.
Foi uma espécie de meio-termo entre o indefensável semáforo proposto pela indústria e os alertas que despertavam tanta oposição por parte do empresariado. A satisfação do setor privado ficou explícita já durante a reunião na qual as lupas foram aprovadas, com uma manifestação favorável da Abia.
Com base em uma pesquisa de opinião do Ibope, Nestlé, Danone, PepsiCo, Unilever e companhia declararam que os alertas causam medo nas pessoas. E, mantendo a máxima de testar argumentos, mesmo que contraditórios, representantes das empresas chegaram a afirmar que o medo acabaria por tornar inócuo esse sistema.
A pedido da Anvisa, uma das pesquisas científicas encomendadas contemplou esse item – um levantamento da Universidade de Brasília, a UnB, com 2.400 pessoas.
Durante a leitura dos resultados da investigação, notamos que a Gerência-Geral de Alimentos distorceu as evidências científicas. A principal conclusão do estudo diz respeito ao bom funcionamento do sistema de alertas. A questão do medo aparece de forma marginal e é inconclusiva: o máximo que se poderia depreender, a partir de uma pergunta isolada, é que existe a necessidade de fazer novas pesquisas. Seria necessário entender que medo é esse e o que as pessoas fariam diante dele – deixariam de consumir ou se tornariam indiferentes aos alertas?
Além disso, as integrantes do Núcleo de Estudos Epidemiológicos em Saúde e Nutrição, da UnB, submeteram um documento durante a consulta pública em que demonstraram contrariedade à interpretação da agência. “Em relação ao item ‘a presença desse selo me causou medo’, esclarecemos que a pergunta, por sua simplicidade, não permite, de forma alguma, qualificar ou discriminar essa emoção básica, de sentidos e intensidade variados segundo a psicologia”.
Entre maio de 2018 e setembro de 2019, ou seja, entre a publicação dos dois relatórios principais a respeito do assunto, a Anvisa permaneceu em silêncio. Mas a aparente calmaria ocultou muitas reuniões a portas fechadas. Esse é um dos aspectos mais relevantes do documento que obtivemos: por ele, descobrimos que a Gerência-Geral de Alimentos e a Abia negociaram minúcias da regulação.
Não chega a ser surpreendente. Sucessivos diretores têm externado a posição de que o papel da Anvisa é mediar as tensões entre saúde pública e lucros privados – inclusive a relatora do caso da rotulagem, Alessandra Bastos. Analisando as agendas dos diretores ao longo de 2019, vimos que 90% das reuniões foram com empresas. No caso da gerente-geral de Alimentos, Thalita Antony de Souza Lima, 86% dos compromissos foram com corporações.
Thalita, por sinal, recebeu elogios públicos por parte do diretor da Abia e, logo em seguida à decisão da rotulagem, deu entrevista ao ILSI, um think tank mantido pelas corporações de junk food e ultraprocessados para mediar a relação entre ciência favorável aos patrocinadores e órgãos públicos. O instituto criado pela Coca-Cola tem sido frequentemente denunciado nos últimos anos pela manipulação de evidências científicas, o que não parece preocupar a gerente-geral de Alimentos: “Entendo que há uma relação simbiótica entre a Agência e o ILSI Brasil, em que ambas as instituições se beneficiam do trabalho conjunto”.
Entre setembro de 2019 e a decisão final, em outubro de 2020, as corporações fizeram uma nova ofensiva para neutralizar os últimos pontos de discórdia. Conseguiu-se diminuir o tamanho da lupa que deverá ser colocada na embalagem – é uma piada pronta: você vai precisar de uma lupa para enxergar a lupa da Anvisa.
Conseguiu-se também enfraquecer o perfil de nutrientes, ou seja, os limites de sal, açúcares e gorduras utilizados para definir se um produto deve levar os selos ou não. Além disso, a Anvisa se decidiu por apenas três nutrientes-chave: gorduras saturadas, sódio e açúcares adicionados.
Em nota, a Rede Rotulagem, que reúne organizações empresariais interessadas no tema, expressou satisfação quando da decisão: “Embora o setor produtivo sempre tenha defendido um modelo mais informativo, tendo inclusive sugerido, no processo de Consulta Pública, o design do semáforo (GDA colorido), confiamos que o modelo aprovado pela Anvisa atende aos objetivos propostos desde o início do processo regulatório”.
Prazos bíblicos
A maioria das contribuições submetidas durante a consulta pública pedia um prazo curto de adaptação. Afinal, estamos diante de uma emergência de saúde. Mas a agência foi profundamente generosa com a indústria, dando um intervalo de 24 meses para o início do processo de adaptação. Os produtos que já estão no mercado terão um ano a mais, ou seja, três no total. E as bebidas com embalagens retornáveis terão cinco anos. Um recorde (negativo) entre todos os países do continente americano que já adotaram algum sistema de rotulagem.
No Chile, as mesmas corporações pintaram um cataclismo em termos de adaptação, dizendo que o setor de embalagens iria à falência, mas o que se deu foi o contrário: a indústria teve de contratar ainda mais gente para dar conta das mudanças dentro do prazo.
A argumentação também ignora o óbvio: quando desejam, essas empresas adaptam as embalagens de forma extremamente rápida. A pandemia ofereceu um exemplo que a Anvisa poderia ter observado: em semanas, vários pacotes foram transformados para tentar lucrar com os medos das pessoas. Por exemplo, com alimentos que prometem aumentar a imunidade ou produtos de limpeza que estampam a promessa de matar 99,9% de bactérias – mesmo que o coronavírus seja, como o nome diz, um vírus.
Mas o principal aspecto do documento está na parte final, quando a Abia projeta os próximos passos. “Objetivo: reforçar os pontos de vitória (votos da diretoria colegiada) e blindar a decisão da Anvisa com base em apoio técnico e científico”.
Entre os pontos a serem neutralizados, a Abia cita o Mercosul. Enquanto a discussão por aqui caminhava contra a maré privada, em 2017 e 2018, as corporações tentaram acelerar o passo dentro do bloco regional para pressionar a Anvisa. Agora, querem colocar um freio. Afinal, se o Mercosul adotar uma regulação mais forte que a brasileira, pode forçar o órgão federal a reabrir a discussão. Em paralelo, naquele momento, o setor privado tentou fazer andar um antigo projeto no Congresso Nacional que previa a adoção de semáforos. Agora, nem se fala mais no assunto.
Outra preocupação clara reside na possibilidade de apropriação das lupas pela sociedade. Em outros países, em especial Chile e México, os alertas se converteram em sinais populares, que acabaram usados em outras ocasiões, como manifestações políticas. Também renderam ações diretas da sociedade, que passou a colocar selos nos produtos diretamente nas prateleiras dos supermercados, antes mesmo que a decisão começasse a valer.
Na mesma seara, a Abia não esconde o receio de que o próximo passo seja discutir a imposição de impostos especiais sobre os produtos que levam selos.
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