Caso não sejam tomadas medidas urgentes de isolamento, Manaus pode alcançar um número constante de 50 mil infectados com coronavírus por dia, o que irá implodir o sistema de saúde da capital, afirmam os pesquisadores que previram a 2ª onda do coronavírus no estado. Como mostramos no Intercept em janeiro, o grupo de oito cientistas elaborou um modelo epidemiológico a partir das taxas de transmissão da nova variante do vírus no Amazonas, a P1, que deixa clara a iminência de uma terceira onda do vírus, ainda mais contagiosa e letal, ignorada pela prefeitura manauara e pelo governo do estado.
Com mais pessoas precisando de atendimento médico, a taxa de mortalidade também aumentará. Foi depois da primeira quinzena de dezembro que o Amazonas atingiu pela primeira vez o número de 50 mil infecções diárias, culminando na segunda onda, alertada com antecedência pelos mesmos especialistas. Em poucos dias, o sistema de saúde entrou em colapso, o oxigênio nos hospitais acabou e pacientes morreram por falta de ar. Praticamente num corredor da morte, internados foram transferidos às pressas para respirar em hospitais de outros estados. Portugal, por exemplo, que tem o triplo da população do Amazonas, decretou lockdown quando atingiu a marca de 15 mil infectados por dia. A previsão é de que a partir do começo da terceira onda, Manaus passe MESES vivendo o terror que chocou o país em janeiro.
Em agosto de 2020, quando publicou os resultados da pesquisa na revista Nature Medicine, o grupo de pesquisadores foi taxado de alarmista. Agora, os números provam que os cientistas estavam certos. Entre o começo da pandemia e dezembro de 2020, Manaus teve 3.886 mortes por covid, o que levou a cidade a ser considerada um dos epicentro da doença no país. Até 2 de março deste ano, foram 4.430 novas mortes pela covid-19.
Em fevereiro, os pesquisadores voltaram a alertar as autoridades. Em nota técnica encaminhada ao governo do estado, à prefeitura e ao Ministério Público e repassada com exclusividade ao Intercept, eles calculam que a capital deve chegar a 75 mil infectados com coronavírus simultaneamente em junho, estabilizando nos meses seguintes em uma média de 50 mil pessoas com o vírus ativo por dia. A nota adianta dados de um estudo ainda em fase de revisão, que será publicado em breve em uma revista científica internacional.
Diferente das duas ondas anteriores, que tiveram picos bastante acentuados da doença, em abril de 2020 e janeiro de 2021, a terceira onda, alertam os cientistas, terá um nível alto de pessoas infectadas e de mortes de forma constante começando em abril e perdurando por todo o ano de 2021 se nenhuma medida for tomada.
“O que o modelo nos mostra é que diariamente Manaus vai conviver com 50 mil infectados”, explica Lucas Ferrante, biólogo do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e um dos autores do estudo.
‘Manaus não está colocando em risco apenas o Brasil, mas, sim, todo o mundo’.
E as coisas podem piorar, e muito, com o surgimento de novas cepas, como a P1, que já está se espalhando pelo país. “A variante P1, que surgiu em Manaus, é duas vezes mais transmissível do que a variante chinesa. A mutação ocorre quando o vírus se propaga. Se propagando duas vezes mais rápido como estamos vendo e sem medidas de controle, as chances de novas variantes são ainda maiores”, diz Ferrante, enfatizando que a capital amazonense já pode ser considerada epicentro mundial de uma nova onda da pandemia.
Em vários países, o número de novos casos está caindo, mas no Brasil ocorre o contrário. Dados do Imperial College de Londres mostram que a taxa de infecção no país está em 1,13 e aumentando, o que indica que a doença volta a ficar fora de controle no país. Aqui vale lembrar mais uma vez de Portugal, que após chegar à beira do colapso, conseguiu com o início da vacinação e um lockdown severo – como recomendam os pesquisadores – baixar a taxa para 0,56. Esse número traduz o potencial de propagação de um vírus: quando ele é superior a 1, cada infectado transmite a doença para mais de uma pessoa e o coronavírus avança.
“Manaus não está colocando em risco apenas o Brasil, mas, sim, todo o mundo. O que vemos no Brasil hoje já é reflexo da variante de Manaus. É preciso fechar o Amazonas para circulação local, nacional e internacional. É urgente!”, alerta o pesquisador Lucas Ferrante.
O novo modelo estatístico leva em consideração o histórico de casos da doença em Manaus desde o início da pandemia até janeiro de 2020, analisando também as internações e vários cenários de isolamento. Segundo o estudo, o número de novas infecções, que no momento está em queda, como também aparece no modelo dos cientistas, deve se intensificar nos próximos quatro meses.
O matemático Luiz Henrique Duczmal, da Universidade Federal de Minas Gerais, que também assina a pesquisa, diz que as previsões do grupo de cientistas se confirmaram em janeiro e fevereiro. “É claro, não é uma bola de cristal, nem pretende ser, mas mostra que o nosso modelo é compatível com os dados observados e, assim, que nossas hipóteses são razoáveis”, observa. “A diferença de nosso trabalho em relação a outras ‘previsões’ é que nosso modelo prevê que as internações não vão zerar rapidamente, mas que vai haver uma estabilização num platô [50 mil casos diários], sem que a epidemia se arrefeça”, conclui Duczmal.
Ele ainda explica que a taxa de mortos com 50 mil infectados por dia pode variar de acordo com a qualidade do sistema de saúde, idade dos doentes e a existência de comorbidades. “Quanto mais rápido a pessoa é internada, menores as chances de complicações, no entanto, com mais internados todos os dias imagina-se que isso também tenha reflexo no atendimento de saúde”, explica.
No dia de 18 de fevereiro, o Ministério Público do Amazonas se reuniu para discutir “ações práticas para evitar a terceira onda”. Mas, apesar do alerta ter partido do grupo de cientistas, os oito pesquisadores foram deixados de fora do debate. Quem participou do encontro foi o infectologista Marcus Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, a FMT-HDV. Ele é visto com frequência se manifestando contra a necessidade de um lockdown e já deu entrevista ao lado do governador Wilson Lima falando sobre estudos para tratamento com cloroquina, já provado ineficaz pela comunidade científica.
O infectologista também responde à investigação criminal que apura mortes de pacientes durante a pesquisa CloroCovid-19. O estudo foi realizado no Hospital Delphina Aziz, da rede pública, com financiamento do governo do Amazonas e participação da Fundação de Medicina Tropical e da Universidade do Estado do Amazonas. Foi aplicado o protocolo de uso da cloroquina em 81 pessoas internadas em estado grave no hospital, e 11 morreram.
O Intercept questionou o MP do Amazonas sobre os resultados práticos da reunião, mediada pela procuradora de justiça Jussara Pordeus, atual Corregedora-Geral do MP. A assessoria do órgão informou que “o GT [Grupo de Trabalho] do MP está acompanhando as medidas tomadas pelo governo e a repercussão nos números da fundação de vigilância em saúde”.
No site do MP, uma notícia sobre o encontro ressalta a necessidade de uma “despolitização imediata da pandemia” e o aumento da vacinação no estado, mas não fala sobre a adoção de um isolamento social mais rígido, visto pelos pesquisadores como única forma de conter a doença.
Sobre o não-convite aos cientistas que apontam a terceira onda, a assessoria de imprensa do órgão disse: “sem resposta para essa pergunta”.
O governo de Wilson Lima segue ignorando o trabalho dos pesquisadores. À reportagem, respondeu que “não há ainda parâmetros técnicos para antecipar a ocorrência de um novo pico de infecções pelo novo coronavírus, tendo em vista que o Amazonas ainda vive uma fase crítica”. O governo também informou que “todas as decisões sobre medidas restritivas e/ou flexibilização são tomadas com base em uma metodologia de avaliação de risco, desenvolvida pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, que considera indicadores de dois eixos principais: capacidade do sistema de saúde e situação epidemiológica”. Em outubro, mostramos como a Fundação divulgou dados errados sobre as mortes por covid-19 no estado, dando lastro à ideia de “fim da pandemia” no Amazonas.
A prefeitura de Manaus não respondeu aos questionamentos sobre a adoção de medidas para evitar a terceira onda na capital amazonense.
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